Relatos de uma internação
- José Lurker
- 2 de set.
- 17 min de leitura
Atualizado: 21 de set.
"...às vezes, tem ciência de acertar, de atingir por momentos o ápice da narrativa. O raro instante em que, ao atingir a corda sensível do enredo, não lhe cabe recuar ou abdicar dos ingredientes que, apaixonadamente enlaçados, determinam seu desfecho."
Nélida Piñon
Será um longo texto, pois somarei os dias gradualmente. Escrevi estas memórias durante minha última internação. Um dia de cada vez, estou limpo desde então. Hoje, especificamente, 58 dias. O texto vai servir principalmente para mim. Mas quem sabe alguém possa se beneficiar deste relato. Só posso afirmar que é genuíno - que representa fielmente minhas impressões, meus sentimentos e pensamentos. O relato começa no sexto dia, porque até então praticamente só dormia e comia, o que é comum em internações por dependência química: chegamos com o corpo e a mente esfacelados, e precisamos de uns dias para começar a ter um funcionamento físico e psíquico minimamente razoável. Quer me acompanhar?
6º dia de internação
Hoje é meu sexto dia de internação. Quase uma semana. Não posso afirmar que me sinto mal. Ao contrário. Estou aliviado. Preocupações tenho - as financeiras. De resto, tenho certeza ter sido a melhor decisão vir para a clínica. Poucos dias de abstinência e de extrema tensão, tem feito diferença na minha vida. Não estou permanentemente cansado ou quimicamente estimulado; consegui participar das atividades de maneira tranquila. Na verdade, sinto-me me aliviado. É como se tivessem tirado um peso de minhas costas. Principalmente culpa. Não só culpa, mas a busca constante de pó, sempre, cada vez mais. E o pensamento obsessivo de sexo. Tenho dormido. Sonhei. Sem a sensação de estar sendo notado. Ou olhado com desconfiança. Tá valendo. Só por hoje.
7º dia de internação
Hoje pela manhã acordei cedo e relativamente disposto. Logo no início da manhã participo de um tratamento espiritual. Foi bom. Sinto-me cuidado em um aspecto que tem sido muito negligenciado: a questão espiritual. Abrir as portas para uma abordagem espiritual já foi um bom passo. Não interessa qual, se concordo ou discordo. É uma abordagem espiritual. E adicção, sem espiritualidade, não tem saída. Isso é claro e translúcido. Passei a tomar um novo medicamento conforme receitado pelo médico psiquiatra. Parece mentira mas estou bastante mais vivo intelectualmente e fisicamente. Consegui ler e caminhar. Os os livros me atraem - quero saber, sem sentir uma obrigação desconfortável de continuar lendo. Começo a ter algumas emoções, aparentemente. Sentimentos. Parece que a ideia de Recuperação volta a fazer sentido. Sem dúvida, a Recuperação se dá um dia de cada vez. Hoje cortei meu cabelo. Gostei do resultado e vi uma pessoa mais saudável no espelho. Essa pessoa sou eu: o rosto perdendo sua tonalidade cinza e voltando a ter alguma vida enfim. Parece. Sinto que é possível me reconectar com a Recuperação. Me reconectar com a vida. Só por hoje. Curar e reexistir.
8º dia de internação
São 2:30 da madrugada. Como de costume, meu sono se esvai e fico totalmente desperto. Acabo pedindo mais um sonífero para tentar conciliar o sono até amanhã. Às vezes dá certo, outras não. Não tenho muitas ilusões. Após meses passando noites em claro, o que esperar senão uma noite de insônia até que o organismo se equilibre novamente e eu volte a ter um sono razoável? Além disso, meu sono nunca foi muito regular, o que certamente agrava a situação. Tento ler um pouco, mas não consigo passar de alguns parágrafos. Hoje recebi um livro com reflexões acerca de religião e espiritualidade. Leio algumas coisas e procuro refletir um pouco. A conclusão que chego é que a espiritualidade é parte não só integrante mas essencial da Recuperação . A espiritualidade nos projeta para fora do lodaçal moral e ético que é a adicção ativa. Há que cultivá-la, um dia de cada vez. Sorte daqueles que já tem fé: é um obstáculo a menos. Aqueles que não tem, terão de construí-la, tijolo por tijolo.
9 dias de internação
Hoje, agora à pouco, mudei de quarto. Já havia estado aqui - é arejado e iluminado. Acho que faz sentido nesse momento que estou vivendo. Creio que estou restabelecendo a conexão. Estou interessado em ler, em estudar e meu cotidiano já está tendo uma rotina razoável. Pela manhã tivemos uma reunião com a psicóloga e ela questionou acerca do nosso propósito na internação e ficou relativamente claro para mim: desintoxicação ( já me sinto mesmo sensivelmente melhor), e reconectar-me com a vida e a Recuperação (o que parece que verbalmente já está relativamente assumido). Tenho tido uma ideia um pouco mais clara dos prejuízo que venho acumulando no último ano, das mais variadas ordens: afetivos, profissionais, financeiros, físicos - poderia dizer clínicos, particularmente no que tange a minha saúde mental - não existia mais saúde mental, existiam destroços. O propósito ficou definido é um só: ficar limpo, um dia de cada vez. E, se der certo, creio que já é uma tarefa gigantesca a ser construída.
10 dias de internação
Escrevo sem grandes pretensões. Não houveram grandes acontecimentos. Bem. Dormi melhor. Apesar de ser deitado muito cedo - logo após o jantar, acordei eram 5:45hs. Em relação aos dias anteriores foi uma verdadeira conquista, pois vinha me acordando literalmente no meio da noite. Meu estado de espírito é bom. Tenho percebido alguma diferença em um aspecto - embora seja algo extremamente sutil. Nos meus primeiros dias de internação eu me percebia "desconfortável dentro do meu próprio corpo". Pouco sei definir o significado disso - ou que sensações eu percebia em mim mesmo. Simplesmente sentia-me mal. Parece que isso começa a ter algum alívio. A decisão de ter vindo para o hospital não podia ter sido mais acertada. Eu estava muito doente. Hoje, vi um ato de compaixão e caridade entre dois companheiros - um deles teve um derrame em consequência do uso abusivo de drogas e o outro ajudava o durante o café-da-manhã. Atos de bondade. Talvez este seja um ponto crucial a ser apontado nessa anotações. Isso significa que é provável que meus sentimentos e emoções estejam começando a aflorar - e daí vem a compreensão, a aceitação, a postura não-julgadora, o entendimento das reações. Poderíamos afirmar reações de ordem moral - e que as pessoas que não sofrem da doença da adicção acabam por atribuir ao adicto. A confusão talvez - e é muito difícil de discriminar mesmo - é de como diferenciar o que são manifestações da doença da adição do que é o ser humano portador da doença. Uma das questões é que é possível que, com o tempo, muitas características do adicto acabam se incorporando ao modo de ser da pessoa. Muitas atitudes do adicto na ativa tem relação com contravenção, delitos, agressividade, impaciência, prostituição. É muito difícil para quem - olhando de fora - acredite que aquilo não seja parte da pessoa. Na verdade, frequentemente, são manifestações da doença da adicção. A gente observa que, quando internados, os adictos, embora não neguem sentir prazer nessas atividades "moralmente condenáveis", no final das contas, elas significam sofrimento. Perdas. Prejuízos. Aos poucos, à medida em que a poeira vai baixando, boa parte dos adictos - claro é que más pessoas existem em qualquer área da vida humana - almeja por uma vida mais equilibrada, honesta, tranquila, pacífica. Serena.
11 dias de internação
Espiritualidade. Taí uma palavra controversa. Creio que hoje usada de maneira abusiva - no sentido de que seu uso é por vezes raso e superficial. Não tem muitas dúvidas de que o processo de Recuperação - que vejo como a saída para doença da adicção - é, bem como afirmam os Alcoólicos Anônimos, de ordem espiritual: para uma doença espiritual, o tratamento precisa ser espiritual. Esse é o cerne da questão: Qual o significado da palavra Espiritualidade? Aí é que vem as multiplicidades de compreensão acerca de sua natureza. É a espiritualidade Divina? Trata-se de algo sagrado? Tenho para mim, de forma cada vez mais clara, que a espiritualidade está principalmente enraizada no relacionamento entre as pessoas. Os princípios espirituais - "a caixa de princípios espirituais" - conforme sugerido pelos Alcoólicos Anônimos me parecem a mais perfeita tradução de espiritualidade: honestidade, aceitação, tolerância, respeito, mente aberta, boa vontade, responsabilidade - e inúmeros outras atitudes que podem balizar as relações entre as pessoas. Daí advém também a capacidade de ouvir, do que chamamos de "escuta ativa", de ponderar e refletir, aceitar opiniões diversas e ter uma postura essencialmente não-julgadora. Isso não significa despida de ética. A ética e a espiritualidade devem ser trespassadas uma pela outra, num processo contínuo de retroalimentação.
12 dias de internação
Meu sono tem sido razoável, até satisfatório, creio poder afirmar, em termos de tempo e de qualidade. Mas os horários ainda estão muito pouco adequados: durmo muito cedo e acordo muito cedo. Bem, creio que tudo isso faz parte do restabelecimento de uma rotina que se aproxima do normal. Paciência. Minha preocupação está focada dos meus problemas financeiros. Nos últimos dias de uso perdi completamente o controle sobre os meus gastos e fui literalmente ludibriado por prostitutas, que exauriram minhas contas bancárias numa velocidade e numa avidez nunca vista. Como eu estava muito intoxicado, não tinha condições de fazer frente às suas manipulações e permanente demanda de dinheiro. Me envolvi de maneira afetuosa com uma jovem, P. , que se comportava com uma pessoa batalhadora e injustiçada pela vida. Tenho que admitir que ela mentia. Andei lendo sobre psicopatia feminina e creio que conheci duas ou três pessoas que tinham esse perfil e com as quais acabei envolvendo. As características básicas parecem ser mentir de forma sistemática, saber expressar situações de auto-penúria de forma detalhada, sugerir situações familiares disfuncionais e não ter quaisquer sentimentos de culpa, arrependimento, compaixão ou afeto com as pessoas com alguém convivem. Tem uma ambição de ganhar dinheiro irrefreável e não enxergam obstáculos para conseguir o que querem. O envolvimento com drogas, particularmente álcool e cocaína, é muito frequente -o que acaba sendo um agravante. Elas se utilizam do sexo com um meio de troca embora muitas vezes o romantizem de forma a enganar a vítima que escolheram. Eu tinha me aproximado de resolver minhas questões econômicas, com a ajuda da minha família e, pelo envolvimento com a última garota (em geral elas fazem programas) voltei à estaca zero. Ontem eu tive que necessariamente fazer face a esta questão e obviamente estou bastante preocupado. Terei de ser sincero e verdadeiro como minha família. Não tenho estes recursos. Mas (assim espero) faço votos que essa situação sirva como mais um elemento que prova a absoluta insustentabilidade de minha adicção. Gastei fortunas, de maneira perdulária e irresponsável. Que o meu Poder Superior me ilumine e me permita encontrar saídas para essa situação tão delicada e desconfortável.
13 dias de internação
Hoje dormi muito pouco - um sono entrecortado. Percebi que havia pego um resfriado (já estava desconfiado) e resolvi usar uma máscara para tentar diminuir a possibilidade de transmití-lo. Hoje. Vivências de manhã, vivências à tarde. Consegui resolver minhas questões com informática. Sinto falta do computador no meu cotidiano. É sexta-feira. Não tenho expectativas - como já aconteceu..... há muito tempo... o fim de semana! Liberdade! Creio que perdi minha liberdade com a adicção. Não me sinto livre para quase nada. Na verdade, parece que preciso uma redefinição de liberdade - do conceito de liberdade. Ressignificar. A minha liberdade antes era poder tudo na hora que eu quisesse. Agora parece significar rotinas. Planejamento cotidiano. Tem algo que pode - sempre - me tirar toda a liberdade: é a droga. A cocaína para mim é uma prisão - uma espécie de maldição Por incrível que pareça, sinto-me mais livre restrito em um ambiente de internação do que na rua, onde sou refém da droga e dos meus pensamentos insanos. Readquirir um pouco de sanidade mental e equilíbrio emocional é adquirir um pouco de liberdade. A questão essencial é preservá-la.
14 dias de internação
Hoje conversamos sobre reservas. Não identifiquei reservas pessoais de imediato mas vislumbrei um aspecto que é possível que tem a forma de uma reserva - a minha relação glamurosa com o submundo. Não há como negar que sinto familiaridade com o submundo que, de certa maneira, me faz trafegar entre "habilmente" no meio dele. Habilmente não é verdadeiro - esta habilidade é comprada. Trafego no submundo às custas de um gasto financeiro incompatível com qualquer racionalidade e assim obtenho aprovação e a confiança - dos traficantes, das prostitutas. Quando estou intoxicado sinto-me como se vivesse em um mundo paralelo - não meu mundo real, como profissional, com uma família e parte de um grupo social. Mas parte de um mundo regido por outras regras, outras leis e outra ética. E não posso, de forma alguma, deixar de dizer que esse mundo paralelo - das drogas, do tráfico, das acompanhantes, da noite - me fascina. E me fascina sobre uma circunstância específica - quando estou drogado. Se estou sóbrio, passo horas, dias, sem pensar nada relativo a "esse lugar". Mas sobre influência da cocaína sinto uma atração irresistível para me transportar para este mundo. Ele é solitário. Ele é sombrio. Mas há tanto tempo circulo dentro dele - sempre sobre efeitos das drogas - que o faço com certa destreza. Porém, agora me dei conta de algo - pensando no meu último fundo de poço, a pé, saindo de um motel, após permanecer 24 horas usando sem parar e trocando de companhia de tempo em tempo - onde fui roubado, sofri golpes, vivenciei momentos pessoalmente ultrajantes, com pessoas de má índole, caminhando com dificuldade e ainda sem conseguir parar de usar, numa estrada movimentada, trôpego, com frio, uma situação que qualquer um caracterizaria com desesperadora - me dei conta que a maior parte dos meus fundos de poço se deram sempre em situações de flerte com este submundo. Depois de horas e horas de uso frenético. Boa parte das vezes em que acabei sendo internado, tive overdoses, foi quando mergulhei no submundo - sem limites. E pela sedução e o glamour (algo incompreensível para uma mentalidade que não esteja totalmente insana) sinto que uma das minhas reservas pode ser essa: o mergulho nas trevas. Uma espécie de morte adiada. Oblivion. Esquecimento. A ideia de alguma espécie de poder que se alinhava com minha adolescência atormentada, solitária, talvez não triste, porque já quimicamente vivida, mas marcada por um fato fundamental: minha péssima autoestima. É provável que um dos principais fatores que me franqueiam pensamentos de voltar a usar - e me colocar em situações de risco de recaída, é quando sou invadido por pensamento e memórias dessa vida na contravenção. Essa é uma das armadilhas que devo desmontar pois preciso sofregamente de sobriedade. Abstinência, para mim, nesse momento, é algo vital. Posso afirmar, sem grandes delongas - é uma questão de vida ou morte. Não que tenha fantasia de uma morte súbita. Não. Mas essa morte a crédito. Essa falência gradativa. Esse envelhecimento que aponta para um lugar cinzento e triste.
14 dias de internação - complementando....
Manter uma postura de não-julgamento em dependência química é difícil. Costumo afirmar que a adicção é uma doença neuropsiquiátrica ( e que na dependência de sua gravidade e complicações, pode tornar-se uma doença clínica - e o alcoolismo talvez seja o maior representante da doença orgânica associada às adicções) com um conjunto de manifestações clínicas que tornam o portador desta doença uma pessoa vulnerável - no sentido de se compreender sua doença como um transtorno ou uma deficiência de ordem moral. Fraqueza moral, "sem-vergonhice", "vagabundagem", "falta de força de vontade" - "se quisesse mesmo parar, parava". Além do que o sofrimento familiar que a adicção causa é de tal ordem grave, que ninguém consegue compreender como uma pessoa pode infligir tanto sofrimento aos outros - em particular àquelas pessoas que mais ama - sem que haja sérias questões que a tornem desta maneira insensível e egoísta. Irritadiça. Briguenta. Pouco acessível ( em particular com conselhos e orientações ). Porém existem pessoas assim e muitas não são adictas, ou seja, trata-se de traços pessoais. O problema na adicção é que esses traços são sintomas da doença! Falávamos que a adição é uma doença neuropsiquiátrica - o que significa que toda a neuroquímica e portanto o funcionamento cerebral está desorganizado - seja em níveis muito profundos - o circuito de recompensa ligado às necessidades mais básicas da vida - e não é exagero reafirmar que é o circuito onde são os receptores as quais a cocaína, particularmente, se liga - e os níveis cerebrais mais nobres, onde estão os centros de julgamento abstrato, a tomada de decisões, a avaliação das consequências de nossos atos. Ou seja, a desorganização neuroquímica do cérebro é de tal ordem que ele é pouco vulnerável as questões da moralidade. Além disso, em particular a cocaína, existe um efeito intensamente supressor sobre as emoções e sentimentos e eles também perdem força e intensidade enquanto balizadores do processo de tomada de decisões do adicto. A tomada de decisão em um adicto já está dada: é usar a droga. E repetir este ato indefinidamente. Não é que os adictos não pensam nos outros - quando decidam usar optam ( não se trata exatamente de uma opção ) por continuar usando. Não existe ressonância emocional que consiga fazer frente a necessidade avassaladora de usar drogas. Mas voltando a atitude de não-julgamento. Estou internado em uma instituição profundamente humanizada. E os funcionários e técnicos da instituição, por conviver em cotidianamente com a adictos em diferentes fases de evolução - recém-internados, primeira, segunda, décima, vigésima, centésima internação, conseguem manter - na maior parte do tempo - essa postura de não julgar e entender que estão cuidando de pessoas doentes. Sim, existem inúmeras regras, horários, definições a serem seguidas à risca. Mas necessárias! Adictos não tem essas noções ( mesmo às vezes há um tempo em abstinentes ). Mas os técnicos costumam ser afáveis e compreensivos e não adotam posturas morais - na imensa maioria das vezes. Isso é positivo. Porque antes de sermos adictos somos pessoas. E toda pessoa merece respeito.
15 dias de internação
Ontem pedi emprestado o livro Azul dos Narcóticos Anônimos para um companheiro. Tenho um afeto muito especial pela literatura dos 12 Passos, seja qual for a irmandade. NA, AA, CA. Li "Recaída e Recuperação", um dos capítulos do livro, pela centésima vez. Na verdade não sei, li inúmeras vezes. E o capítulo é claro - ele desenha a recaída enquanto uma possibilidade ou um risco iminente, e a correlaciona com um fator que identifica como vital: a indulgência com o programa de 12 Passos. A recaída está sempre mais próxima quanto mais nos afastamos do programa: reuniões, literatura, contacto permanente com outros adictos em recuperação, cultivo da espiritualidade e dos princípios espirituais, compartilhamento de nossas vidas com outros adictos ou nosso padrinho. Aqui preciso anotar: sempre tive dificuldade de estabelecer uma relação profunda e prolongada com um padrinho e de trabalhar, em ordem, os 12 Passos.
Bem, esta é minha última semana no hospital e preciso ter algumas coisas em mente. A Recuperação exige trabalho e esforço. Isso precisa ficar claro. Não vem de graça. Preciso definir frequência em grupos e vou procurar lançar mão delas, com certa regularidade - isso provavelmente significa reuniões presenciais no mínimo semanais, e também retomar as reuniões que já participava (IDAA) e escolher um grupo online para participação regular. Se conseguir manter uma frequência de três reuniões semanais já, considero uma excelente conquista.
Hoje pela manhã reli o Primeiro Passo do NA. Quanta verdade! Em 3 ou 4 páginas vemos nossa vida exposta em detalhes. "Admitimos que éramos impotentes perante nossa adicção e que nossas vidas tornaram-se incontroláveis". Eu não tenho a mínima dúvida que sou um adicto e que meu quadro é particularmente grave. Não tenho a menor dúvida de que perdi o controle sobre minha própria vida. O que resta? Ou vivo esta vida miserável "até o mais amargo fim" ou entro em um processo permanente e virtuoso de Recuperação. Escolho o segundo. Preciso recomeçar a minha vida e ainda tenho muito onde me apegar. O trabalho, a família, meus interesses pessoais, que permanecem quase intactos. Que me permitem uma vida rica e satisfatória. Preciso reencontrar - ou encontrar pela primeira vez? -o valor da Paz e da Serenidade. Preciso nutrir o amor pelas pessoas queridas - de maneira verdadeira e genuína, expressa em atitudes. Preciso estar limpo. Caminhar. Cultivar amizades saudáveis. Amanhã eu vou ler o segundo passo. E aos poucos vou me religar aquilo que muito trouxe sentido à minha vida. A palavra que sempre me falta, na hora em que necessito dela: Rendição. Preciso me render. Retomar minha Recuperação. Nada de melhor pode acontecer para mim. Nada de melhor pode acontecer para as pessoas que estão à minha volta. Trabalho. Esforço. Rendição. Preciso dar sentido, significado e concretude a essas palavras.
Oração da serenidade:
Concedei-me, Senhor, a Serenidade necessária
para aceitar as coisas que não posso modificar,
Coragem para modificar aquelas que posso
e Sabedoria para distinguir uma das outras.
Só por hoje.
Um dia de cada vez.
Internação: Dias 16 e 17
Ontem um episódio de conversa familiar me trouxe bastante desconforto e ansiedade. Provavelmente em decorrência dele não consegui escrever. O NA/AA sempre falam que a adição leva aos 3 Cs: Clínica, Caixão e Cadeia. E é verdade, tanto que estou na clínica. Porém outras possibilidades de restrição da liberdade são possíveis: a Institucionalização Permanente enquanto pessoa com dano psiquiátrico irreversível e a Interdição. Tenho ciência que qualquer dessas possibilidades podem me ocorrer. E qualquer uma delas me causa calafrios. Até já pensei em viver romanticamente... Uma saída a la Proust: fechar-me em um ambiente e lá permanecer, às voltas comigo mesmo e uma utópica obra. Diferente de Proust, eu vivo no século XXI, e ao invés de pena e páginas, eu teria computadores, redes sociais, cinema - um infinito acesso à coisas que fazem parte da vida, mas a vida me estaria sendo negada. Porém ameaça de interdição e institucionalização me colocaram em um estado de profunda ansiedade. Felizmente não tenho lançado mão de recursos químicos para combater a ansiedade. E pensei e refleti. Cheguei à conclusão que a história era fragmentária e pouco concatenada. Por trás dela mais uma ameaça do que algo real. Sei que me coloquei em inúmeras situações de risco no último ano e que isso poderia - e pode - ter afetado minha família também. O que fiz: conversei com pessoas. Com familiares - ao telefone, com um colega que me tranquilizou um pouco e por fim com um outro companheiro, que é policial civil e advogado. Consegui ter um pouco mais de clareza em relação ao ocorrido - acredito e também observei uma certa ingenuidade e irracionalidade, caso a história toda tenha sido construída para me ajudar - ou descrever as consequências de minhas atitudes e decisões caso eu não consiga parar de usar e entrar em Recuperação. Mas ficou uma lição, que de certa maneira me fortaleceu, pois foi uma situação de intenso estresse que enfrentei - me vi numa situação de verdadeira penúria existencial e de real perspectiva de perder tudo o que ainda tenho de concreto - exceto a vida, despida de alegorias - e que consegui - aparentemente - superar de forma relativamente tranquila e racional. E a outra lição que ficou ( caso minhas suposições sejam verdadeiras ) é que o que às vezes pode transparecer com uma possibilidade de ajuda e uma advertência, pode funcionar como uma grande fonte de sofrimento. Ainda mais se pensarmos em alguém que se encontra dentro de uma instituição, privado de liberdade e de possibilidades de comunicação. Se o meu raciocínio estiver correto e suas bases forem reais, não faça isso com ninguém. Revela falta de cuidado, de senso, de ternura, de afeto. Agora, se a situação chegou a um ponto de absoluto descontrole, quando a pessoa passa a representar um risco real para si e para os outros, seja no sentido que for, que sejam tomadas as medidas cabíveis - e se no centro delas eu for a pessoa para quem a seta é apontada, que eu tenha a maturidade de aceitar a justiça dos homens. E submeter-me ao destino que de certa forma ( não ) escolhi.
17 dias de internação
Complicações clínicas da adicção a cocaína:
-Coriza crônica, anosmia, anorexia
-Facies de consumpção, emagrecimento, sarcopenia e fraqueza muscular
-Cansaço aos pequenos esforços
-Olheiras
-Polaciúria, urgência miccional
-Dermatoses ( descamação na palma das mãos, lesões de pele de várias aparências )
-Incontinência fecal, diarreia persistente
-Grave comprometimento da saúde oral
-Neuropatia periférica
-Disfunção erétil
-Gravíssimo distúrbio sono-vigília.
Complicações psíquicas da adicção à cocaína:
-Síndrome de abstinência: severo mal-estar global, físico, mental, psíquico, espiritual, moral, disforia ( significativa instabilidade do humor)
-Desleixo e comprometimento do autocuidado
-Dificuldade em realizar tarefa simples
-Incapacidade de tomar decisões ou tomar decisões equivocadas e incoerentes após o uso
-Estado de desconfiança - às vezes beirando a paranoia
-Alexitimia ( dificuldade em reconhecer sentimentos)
-Inexistência de sentimentos
-Incompatibilidade entre discurso e atitude
-Irresponsabilidade
-Insensibilidade
-Obsessão ( de várias ordens: pensamento obsessivo em usar e após o uso, de continuar usando, pensamento promíscuos persistentes)
-Compulsão: absoluta incapacidade em parar de usar, compulsão por sexo e pornografia
-Irritabilidade
-Restrição de repertório vivencial
-Dificuldade e incapacidade de ler, prestar atenção, se concentrar em tarefas mais complexas intelectualmente
-Grave dificuldade de relacionamento com as pessoas não usuárias de drogas
-Envolvimento em situações de risco: com a polícia, com traficantes, com prostitutas, sexo desprotegido
-Total descontrole financeiro, o que envolve perdas financeiras graves, golpes, gastos perdulários, não pagamento de dívidas. Falência.
-Relações inseguras com a família e colegas
-Perdas de toda espécie: amizades, trabalho, da confiança e respeito das pessoas
-Insanidade
Ganhos Com Adição: fora o alívio imediato da abstinência e da vivência em um estranho universo paralelo ( que encerra alguma espécie obscura de prazer ) identifico uma enormidade de perdas e pouquíssimos (se existentes) ganhos. Dependência química é uma doença. Quem, em sã consciência, escolheria toda esta lista de problemas para si?
18 dia de internação
Escrevo, mesmo que pouco. Procurando manter a mente aberta, vi o vídeo de uma pessoa que costumo não gostar muito: 5 pontos fracos de independente químico. Foi proveitoso. As questões tinham relevância: - auto-controle, emoções humor ponto tenho dificuldade e identificar o de sempre mas percebi: nesse momento estou angustiado. Quais seriam as razões? Bom, minha alta se afigura. Sim. Medo medo de recair. Medo de perder mais coisas -trabalho, dinheiro. Medo de enfrentar a realidade. Medo da velhice. Medo da solidão. Medo da falta de amor. Estou preenchido de medos. E são os medos que me angustiam. Não tenho o hábito de ter medo. Talvez precise começar a ter. Realisticamente, minhas perspectivas são melhores do que quando entrei. Mas entrei intoxicado. Meses de intoxicação contínua. A vida ficou de lado. Minha relação com o mundo se dava através da caminhada pelo universo paralelo e contatos pontuais com o mundo real. Estou ciente do mundo real e a fumaça, a névoa, a poeira, baixaram. Acho que é melhor que eu me sinta assim. Amedrontado, angustiado e temeroso do que vai do que vai ocorrer nos próximos dias. Excesso de expectativas positivas seria ruim. Talvez o que o meu espírito esteja me exigindo é essencialmente cautela. Eu precisarei dela para viver o resto dos meus dias. Não vai dar para viver, exceto vivendo um dia de cada vez. Hoje é 24 de julho. Cheguei aqui dia 5. Mas havia usado bastante no dia anterior e naquela manhã do dia 6 de julho de 2025. Estou limpo há 19 dias. Três semanas. Não sei quantas chances a vida vai me dar. Pode ser uma das últimas. Pode ser a última.

Comentários