top of page

Nutrindo novas memórias

  • Foto do escritor: José Lurker
    José Lurker
  • 8 de jan. de 2024
  • 3 min de leitura

Atualizado: 20 de mai. de 2024

A memória do adicto não é confiável. O esquecimento de um desastre recente, um apagamento das consequências às vezes trágicas, para si e para sua família, de uma recaída, é uma dos aspectos mais intrigantes da adicção. A literatura de Doze Passos é farta no sentido de apontar esta insanidade - repetir o mesmo erro esperando resultados diferentes. Para o adicto, portanto, é bem importante estar atento à suas memórias: o canto das sereias, na adicção, é tão traiçoeiro quanto o foi para Odisseu, na obra clássica de Homero - mas Odisseu (Ulysses, na versão romana) amarrou-se ao mastro do navio e encheu de cera os ouvidos dos remadores e conseguiu ultrapassar os mares revoltos que cercavam a ilha de Capri (onde acredita-se que viviam as sereias). Caso não esteja atento, o adicto se joga inúmeras vezes nos mares revoltos, acreditando que, desta vez, encontrará a sua sereia. Ser enganado pela própria memória é algo tão maçante na dependência química que se torna incompreensível para as outras pessoas de como alguém, às vezes tão ponderado em relação à uma série de aspectos da vida, é tão estúpido quando se trata de álcool (e drogas). A figura do Jaywalker ("pedestre descuidado ou imprudente") na página 37 do capítulo "Mais sobre o Alcoolismo" do livro Alcoólicos Anônimos traça um retrato fiel do caráter evanescente - e perigoso - de como se estrutura a memória na cabeça de um adicto e de como ela compromete a tomada de decisões e avaliação das consequências, situação esta que vai se agravando à medida em que a ideia de uso da droga vai sendo alimentada. Chega um momento que a cegueira é total. A escolha praticamente não existe mais. A boa notícia é que, quanto maior o tempo de abstinência, maior clareza a pessoa terá da situação que está se defrontando, pesando riscos e benefícios, tomando as decisões mais saudáveis e buscando estratégias de proteção.

A natureza pode ser terapêutica

Confesso que minha paciência para tornar tudo uma terapia é bem restrita. Tomar um café com um amigo é tomar um café com um amigo. Ir ao cinema é ir ao cinema, como ir no estádio ver um jogo nada mais é que ir ao estádio. Não fazemos estas coisas com o objetivo terapêutico, fazemos porque nos fazem bem. Tenho feito passeios na natureza. Em lugares realmente privilegiados. Embebido de novos ares , novas visões - convivendo com outras pessoas, que sequer imaginam de meu histórico de adicção, tem feito diferença na minha vida. Sim, parece que isso pode ser terapêutico, e no Japão é chamado de shinrin-yoku . A adicção ativa nos transforma em pessoas fragmentárias - aos pedaços - e nossas memórias frequentemente são fraudadas por visões de uso, por lugares obscuros, por pessoas estranhas ou mesmo más. E estas memórias tomam uma enorme proporção em

nossas vidas - parece que é tudo que há.



ree

A clandestina

Quem é esta clandestina que dentro de mim viaja

e de mim não se separa mesmo quando estou dormindo

e aparece nos meus sonhos breve e leve como a neve?

Quem é esta clandestina doce e branca e feminina

que me segue quando saio sombra em mim dissimulada

e torna a voltar comigo colada ao cair da tarde?

Quem é esta clandestina que de mim não desembarca?

Sou seu trem ou seu navio? Seu barco ou seu avião?

E sua voz me responde: És meu berço e meu jazigo.

Antes mesmo de nasceres eu já estava contigo. E sempre estarei em ti até o fim da viagem.



Então você começa a perceber que gosta de música. De poesia. De esporte. De caminhar ou correr ou andar de bicicleta. De nadar. De viajar. De frequentar exposições, museus. De ouvir música. Quer abraçar seus amigos - chega num ponto que até abraçar se torna difícil. Quer olhar sua família nos olhos. Você ainda quer amar. Mas talvez nem saiba mais o que é amar, no meio de tanta confusão. Por vezes prefere ficar sozinho no escuro em silêncio. Não por prazer, mas por medo. Aquelas tentativas inseguras de iniciar algo novo, que você esquece no dia seguinte e sobra só a culpa, este flagelo da adicção. Tem uma hora que chega. Você quer mudar, quer uma vida diferente. Só por hoje.

Daí vem a ideia de formar novas memórias. Enxertar na sua vida momentos de gratidão, onde novas vivências e novas paisagens possam ressignificar a vida, um dia de cada vez.

Construir novas memórias é Recuperação. É outra vez abraçar a vida com paixão. Mas também com Serenidade, com Coragem. E Sabedoria.


ree

Comments


bottom of page